Por Luís Antônio Giron, na Época
Ao assistir ao filme O Hobbit – uma jornada inesperada, do diretor neozelandês Peter Jackson, senti a mesma alucinação recorrente que tive quando vi os três filmes de O senhor dos Anéis, também de Jackson, no início da década passada. O ambiente concebido pelo escritor inglês J.R.R. Tolkien e recriado em alta tecnologia digital (filmagem em 3D e 48 quadros por segundo) por Peter Jackson é o dos romances da Idade Média, com seus cavaleiros, senhores de territórios fragmentários, o amor cortês, o misticismo ardente e superstições materializadas em seres fantásticos.
Ao assistir ao filme O Hobbit – uma jornada inesperada, do diretor neozelandês Peter Jackson, senti a mesma alucinação recorrente que tive quando vi os três filmes de O senhor dos Anéis, também de Jackson, no início da década passada. O ambiente concebido pelo escritor inglês J.R.R. Tolkien e recriado em alta tecnologia digital (filmagem em 3D e 48 quadros por segundo) por Peter Jackson é o dos romances da Idade Média, com seus cavaleiros, senhores de territórios fragmentários, o amor cortês, o misticismo ardente e superstições materializadas em seres fantásticos.
Mas voltemos
à alucinação. Consigo perceber uma cruz invisível atravessando todas as
sequências. A cruz não se encontra estampada nos trajes dos elfos e não está
fincada no topo da Montanha Solitária, mas é como estivesse lá, sub-reptícia,
uma marca d’água. É como se Tolkien houvesse subtraído o símbolo mais ostensivo
do Cristianismo – talvez porque fora utilizado militarmente durante as Cruzadas
– para que viessem à tona os valores que a cruz oculta e ofusca.
Assim, o
jogo de ausência e presença simbólica da religião no filme e na obra de Tolkien
é tão sutil como insidioso. Não apenas Tolkien faz uma defesa dos fundamentos
cristãos, como sobretudo enfatiza a beleza e a aura divina do catolicismo. Isso
se dá não só porque Tolkien era um católico fervoroso que trabalhou ao abrigo
da Universidade Oxford – assim como seu amigo C.S. Lewis, autor das Crônicas de Nárnia, outra manifestação católica sob a forma de alegoria fantástica. Tolkien
e Lewis acreditavam na literatura como um estágio necessário para a
transformação espiritual da humanidade e sua elevação aos rituais mais belos…
que se encontram no Vaticano, cuja origem está na ritualística pomposa do
Império Romano.
Tolkien fez
o seu catolicismo penetrar no romance O Hobbit (1937) e na
sua sequência, a trilogia de romances Senhor dos
Anéis (1954-1955). Embora ele quisesse, no fim das contas, narrar uma boa
história, esperava que seus leitores evoluíssem espiritualmente com ela. Dizia
que um dos objetos “subcriativos” de seu projeto era “a elucidação da verdade,
e o encorajamento da boa moral neste mundo real, através do antigo artifício de
exemplificá-las em personificações pouco conhecidas, que podem tender a
prová-las”. A citação está no livro Encontrando Deus em O Hobbit (Thomas
Nelson, 200 páginas, R$ 29,90), de tolkienólogo Jim Ware, um dos muitos
lançamentos “místicos” e de autoajuda (ou autoilusão) na esteira do lançamento
do filme de Peter Jackson. Jim Ware diz que garante que o leitor “vai encontrar
Deus” ao ler O Hobbit. Talvez isso seja difícil. Mais fácil é encontrar os preceitos da Cúria
Romana na saga.
Aqui me
permito um desvio sobre a composição das obras, que ajudará a compreender
melhor o processo criativo e a crença de Tolkien. O Hobbit é um
prelúdio da trilogia do Anel, e nesse sentido mantém um estreito parentesco
espiritual e estrutural com a tetralogia operística O Anel dos Nibelungos(1876), de Richard Wagner, com seu prólogo e a saga dos deuses dominados
pelo ouro do rio Reno (Wagner foi acusado por Nietzsche de se render ao
catolicismo bávaro ao fim da vida).
No ensaio Explorando o universo do Hobbit (Lafonte,
258 páginas, R$ 29,90), o medievalista (como Tolkien) Corey Olsen afirma que
Tolkien revisou O Hobbit, pensado inicialmente como um livro infantil, com o objetivo de ampliar
a história da Terra-média e inseri-lo na composição final de Senhor dos Anéis. Alterou, por exemplo, o encontro do Gollum com Bilbo Bolseiro, para que
o achado do anel ganhasse mais consistência. Na versão original, Bilbo, um
depositório inconsciente da ética católica, apossou-se do anel e se despediu do
Gollum de maneira amistosa, não sem uma dose de culpa, já que o Gollum não
havia notado o furto. Na nova versão, o Gollum percebe-o e jura odiar para
sempre o hobbit. O ódio se torna um alicerce para a trama levada adiante pelo
sobrinho de Bilbo, Frodo, em O Senhor dos
Anéis. Curiosamente, Peter Jackson faz
quase a mesma coisa: ele seguiu Tolkien para encaixar O Hobbit como
prelúdio a Senhor dos
Anéis. Mesmo assim, Jackson
desrespeitou a organização da obra para prolongar O Hobbit em três
filmes – o que tornou o primeiro longa-metragem arrastado e repleto de
flash-backs irritantemente explicativos.
A organização retroativa proposta por Tolkien fornece às aventuras dos
hobbits, anões, elfos, trolls, magos e orcs um qualidade arquitetônica. Sua
tetralogia como que derrete a ordem perfeita da Catedral de São Pedro no
Vaticano para reencenar com suas figuras, alegorias e simbologia uma aventura
de revelação em um ambiente alienígena, em uma geografia imaginária.
No mapa de
Tolkien ingressam transfigurados os princípios elementares do catolicismo.
Assim como a viagem de Gandalf, Bilbo (interpretado no filme pelo ator inglês e
católico Martin Freeman) e os 13 anões é uma representação da volta à Terra
Prometida (os anões pertencem a um povo valoroso, porém espoliado de seus
tesouros pelo dragão Smaug), abençoada por um hobbit bondoso, a história da
peregrinação a Mordor e a devolução do anel pode ser lida como uma alegoria do
Evangelho encoberta sob o manto da fábula. Pode-se deduzir que O Hobbit é o Velho
Testamento; Senhor dos
Anéis, o Novo. Todos os volumes da
história da Terra-média de Tolkien (Os filhos de Húrin, O
Silmarilion etc.) compõem uma versão fabulosa e medievalesca da Vulgata Latina, a
tradução da Bíblia para o Latim feita por São Jerônimo no século III d.C.,
considerada o texto oficial das Sagradas Escrituras pelo Vaticano.
Além dessas
transposições, é possível identificar quatro aspectos mais evidentes do
Catolicismo no enredo de O Hobbit e Senhor dos Anéis. Em primeiro lugar, Bilbo, um hobbit aparentemente conformista, torna-se
o escolhido para viver uma aventura: seguir com os anões à Montanha Solitária,
atravessando terras ermas e perigosas, para enganar Smaug e restituir o tesouro
e a terra aos seus donos originais. Trata-se, portanto, de uma jornada
iniciática. “No final, você não será o mesmo”, avisa Gandalf. Bilbo irá
conquistar o anel, ficar rico e atingir a espiritualidade. É o mesmo percurso
exigido ao católico, que galga os degraus rumo à perfeição, do batismo à
extrema-unção na vida profana e, na sacerdotal, do noviciado à sagração como
bispo e até mesmo papa.
Um dos
pré-requisitos para Bilbo e amigos seguirem adiante é a obediência. Dessa
forma, se fazem presentes a submissão e até mesmo a admiração de todos os
personagens “bons” a uma hierarquia imperial, a um poder central liderado pelo
Papa, o mandatário direto de Deus na Terra, segundo a Igreja Católica. Como a
cruz, não há um papa explícito em O Hobbit, mas Gandalf parece ser o mais próximo de empunhar o cajado e a cruz de
São Pedro. Ou Bilbo, a longo prazo.
As virtudes
teologais, em terceiro lugar, são o motor da trama de combate ao Mal: Fé,
Esperança e Caridade. Bilbo reúne-as como nenhum outro personagens. Mesmo
quando tomar para si o anel, usa seu poder para reforçar a fé entre os
companheiros de jornada.
Desse modo,
quando o objetivo dos justos contra os ímpios está próximo a ser alcançado,
contará o quarto e maior elemento católico da história de Tolkien: a Divina
Providência. É ela que vem resgatar o herói nos instantes de maior perigo. Como
na terra dos orcs, quando águias gigantes salvam os anões liderados por Thórin
e Bilbo da morte. As águias simbolizam ali o Espírito Santo, parte da
Santíssima Trindade, ao lado do Pai e do Filho. A Divina Providência retornará
ao longo de O Hobbit e Senhor dos Anéis para
organizar os reinos caóticos da Terra-média.
Bilbo e
companheiros fazem o papel de apóstolos. São soldados de Cristo em uma Cruzada,
ainda que sem cruz. Eles conduzem o leitor e o espectador às altas esferas da
crença, para assim promover sua conversão por meio da catequese. No entanto, à
parte a crença e persuasão doutrinária, o texto de Tolkien consiste em uma peça
artística, uma narrativa de ficção, onde as leis da lógica são alteradas. E é
na fantasia que o aspecto mais profundo do catolicismo de Tolkien se revela, na
crença de que o reino deste mundo é maléfico. Assim, Mordor ou Ereborn, os
reinos caóticos deste mundos, não valem a pena ser conquistados, pois o reino
está em outro lugar, no plano espiritual e divino. Nem mesmo o Condado do
Bolsão, onde moram os hobbits, é recomendável. “Meu reino não é deste mundo”,
poderia dizer o mago Gandalf, ecoando Jesus Cristo.
No entanto, apesar de poder ser compreendida como páginas de doutrinação
religiosa, a experiência mais enriquecedora é ler e ver O Hobbit e Senhor dos Anéis como obra de
arte literária e cinematográfica. Tolkien parece demonstrar a observação do
escritor argentino Jorge Luis Borges, segundo o qual a metafísica (e, por
extensão, a religião) deve constituir uma subcategoria da literatura fantástica.
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