Francisco durante homilia em Santa Cruz de La Sierra Foto: Reprodução / CTV |
"Viemos de lugares, regiões, povoados distintos, para celebrar a presença viva de Deus entre nós", afirmou Francisco durante sua homilia, onde também falou sobre a Eucaristia, "Pão repartido para a vida do mundo".
Francisco também reiterou que "uma vida memoriosa precisa dos outros, do intercâmbio, do encontro, duma solidariedade real que seja capaz de entrar na lógica do tomar, bendizer e entregar".
Confira abaixo a íntegra da homilia do Santo Padre.
Viemos de lugares, regiões, povoados distintos, para
celebrar a presença viva de Deus entre nós. Há horas que saímos de nossas casas
e comunidades, para podermos estar juntos como Povo Santo de Deus. A cruz e a
imagem da missão trazem-nos à memória todas as comunidades que nasceram sob o
nome de Jesus nestas terras e das quais somos herdeiros.
No Evangelho que acabamos de ouvir, descrevia-se uma
situação muito semelhante à que estamos a viver agora. Como aquelas quatro mil
pessoas, também nós estamos desejosos de ouvir a Palavra de Jesus e receber a
sua vida. Eles ontem e nós hoje, ao pé do Mestre, Pão de vida.
Nestes dias, pude ver muitas mães que carregavam seus filhos
às costas, como aliás muitas de vós o fazem aqui. Carregando sobre si a vida, o
futuro do seu povo. Carregando os motivos da sua alegria, as suas esperanças.
Carregando a bênção da terra nos frutos. Carregando o trabalho feito com as
suas mãos. Mãos, que moldaram o presente e tecerão os sonhos do amanhã. Mas
carregando também sobre os seus ombros decepções, tristezas e amarguras, a
injustiça que parece não ter fim e as cicatrizes duma justiça não realizada.
Carregando sobre si mesmas a alegria e a dor duma terra. Carregais sobre vós a
memória do vosso povo. Porque os povos têm memória, uma memória que passa de
geração em geração, uma memória em caminho.
E não são poucas as vezes que experimentamos o cansaço deste
caminho. Não são poucas as vezes que nos faltam as forças para manter viva a
esperança. Quantas vezes vivemos situações que pretendem anestesiar-nos a
memória e, deste modo, debilita-se a esperança e, pouco a pouco, perdem-se os
motivos de alegria. E começa a apoderar-se de nós uma tristeza que nos torna
individualistas, que nos faz perder a memória de povo amado, de povo escolhido.
E esta perda desagrega-nos, faz com que nos fechemos aos outros, especialmente
aos mais pobres.
Pode suceder a nós o mesmo que aos discípulos de ontem,
quando viram a quantidade de pessoas que estava lá. Pedem a Jesus que a mande
embora, já que é impossível alimentar tanta gente. Perante muitas situações de
fome no mundo, podemos dizer: «Os números não batem certo; não podemos resolver
a conta». É impossível enfrentar estas situações; então o desespero acaba por
apoderar-se do coração.
Num coração desesperado, é muito fácil ganhar espaço a
lógica que pretende impor-se no mundo de hoje. Uma lógica que procura
transformar tudo em objeto de troca, de consumo: vê tudo negociável. Uma lógica
que pretende deixar espaço para muito poucos, descartando todos aqueles que não
«produzem», que não são considerados aptos ou dignos porque, aparentemente, «os
números não batem certo». Jesus retoma a palavra para nos dizer: Não é
necessário irem embora; dai-lhes vós mesmos de comer.
É um convite que hoje ressoa fortemente para nós: «Não é
necessário mandar ninguém embora, basta de descartes; dai-lhes vós mesmos de
comer». Jesus continua a dizer-nos nesta praça: Sim, basta de descartes;
dai-lhes vós mesmos de comer. O olhar de Jesus não aceita uma lógica, uma
perspectiva que sempre «corta o fio» pelo ponto mais frágil, mais necessitado.
Tomando «o pedaço», Ele mesmo nos dá o exemplo, nos mostra o caminho. Uma
atitude em três palavras: toma um pouco de pão e alguns peixes, bendiz a Deus por
eles, divide-os e entrega para que os discípulos os partilhem com os outros.
Este é o caminho do milagre. Por certo, não é magia nem idolatria. Por meio
destas três ações, Jesus consegue transformar a lógica do descarte numa lógica
de comunhão, de comunidade. Gostaria de destacar brevemente cada uma destas ações.
Toma. O ponto de partida é tomar muito a sério a vida dos
seus. Fixa-os nos olhos e, nestes, conhece a sua vida, os seus sentimentos. Vê,
naquele olhar, o que pulsa e o que deixou de pulsar na memória e no coração do
seu povo. Considera-o e valoriza-o. Valoriza todo o bem que possam oferecer,
todo o bem a partir do qual se possa construir. Mas não fala dos objetos, dos
bens culturais ou das ideias; fala das pessoas. A riqueza maior duma sociedade
mede-se na vida do seu povo, mede-se nos idosos que conseguem transmitir aos
mais novos a sua sabedoria e a memória do seu povo. Jesus nunca ignora a
dignidade de pessoa alguma, por maior que seja a aparência de não ter nada para
oferecer ou partilhar.
Bendiz. Jesus toma em suas mãos o dom, e bendiz o Pai que
está nos céus. Sabe que estes dons são um presente de Deus. Por isso, não os
trata como «uma coisa qualquer», dado que toda esta vida é fruto do amor
misericordioso. Ele reconhece-o. Vai além da simples aparência e, neste gesto
de bendizer, de louvar, pede a seu Pai o dom do Espírito Santo. Aquele ato de
bendizer tem esta dupla perspectiva: por um lado, agradecer e, por outro,
transformar. É reconhecer que a vida é sempre um dom, um presente que, colocado
nas mãos de Deus, adquire uma força de multiplicação. O nosso Pai não nos tira
nada, multiplica tudo.
Entrega. Em Jesus, não existe um tomar que não seja bênção,
nem uma bênção que não seja entrega. A bênção é sempre missão, tem um destino:
repartir, partilhar o que se recebeu, uma vez que só na entrega, no compartilhar
é que as pessoas encontram a fonte da alegria e a experiência da salvação. Uma
entrega que quer reconstruir a memória de povo santo, de povo convidado,
chamado a ser portador da alegria da salvação. As mãos, que Jesus ergue para
bendizer o Deus do céu, são as mesmas que distribuem o pão à multidão que tem
fome. Podemos imaginar como os pães e os peixes iam passando de mão em mão até
chegar aos mais afastados. Jesus consegue gerar uma corrente entre os seus:
todos estavam compartilhando o seu, transformando-o em dom para os outros, e
foi assim que comeram até ficarem saciados. E, incrivelmente, sobrou:
recolheram sete cestos de sobras. Uma memória tomada, abençoada e entregue sempre
sacia um povo.
A Eucaristia é «Pão repartido para a vida do mundo», como
diz o lema do V Congresso Eucarístico que hoje inauguramos e vai realizar-se em
Tarija. É sacramento de comunhão, que nos faz sair do individualismo para
vivermos juntos o seguimento de Jesus e nos dá a certeza de que aquilo que
temos e somos, se tomado, abençoado e entregue, pelo poder de Deus, pelo poder
do seu amor, transforma-se em pão de vida para os outros.
A Igreja é uma comunidade memoriosa. Por isso, fiel ao
mandato do Senhor, repete incansavelmente: «Fazei isto em memória de Mim» (Lc
22, 19). Geração após geração atualiza, nos distintos cantos da nossa terra, o
mistério do Pão da Vida. No-lo faz presente e entrega. Jesus quer que
participemos desta sua vida e, por nosso intermédio, se vá multiplicando na
nossa sociedade. Não somos pessoas isoladas, separadas, mas o Povo da memória atualizada
e sempre entregue.
Uma vida memoriosa precisa dos outros, do intercâmbio, do
encontro, duma solidariedade real que seja capaz de entrar na lógica do tomar,
bendizer e entregar; na lógica do amor.
0 comentários:
Postar um comentário